Apesar de a Doutrina da Expiação ser um elemento de
libertação tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, no decorrer da história
ela foi utilizada muitas vezes como instrumento de alienação, dominação e
opressão do mais fraco. Essa é uma das razões pelas quais teólogos, como o
anglicano John Hick, questionam a compreensão cristã tradicional[1].
Conforme afirma Hick, "historicamente,
o dogma tradicional foi utilizado para justificar grandes males humanos"[2].
Basta recordar a Inquisição[3],
"a sistemática perseguição legal de
hereges por um tribunal da igreja"[4],
responsável pelo assassinato, tortura e mutilação de milhares de pessoas, em
nome de Deus. A doutrina da expiação também foi usada como instrumento de
coerção político-ideológica no Descobrimento
das Américas[5],
quando as coroas de Portugal e Espanha, respaldadas pela Igreja,
transformaram o evangelho "num
instrumento de dominação"[6].
Nesse processo, milhares de pessoas foram mortas, muitas vezes sob a apelação da
própria salvação das almas das vítimas. Nesse sentido, ao tratar do tema da
ideologia da 'guerra santa' dos missionários colonizadores portugueses, Hoornaert afirma que "os símbolos relacionados com a vida, paixão, morte e ressurreição de
Jesus Cristo não escaparam à influência da ideologia guerreira"[7].
Na verdade, estes argumentos não são definitivos quanto ao
caráter da doutrina da expiação, uma vez que doutrinas cristãs legítimas e de
impacto libertador foram, na verdade, utilizadas de forma ilegítima no decorrer
da história, em razão da crescente ligação que a Igreja passou a estabelecer
com o poder, principalmente a partir do século IV. Nessa época, o cristianismo
passa muito rapidamente de religião perseguida para religião tolerada,
favorecida e, enfim, oficial do Império Romano[8],
constituindo-se, a partir de então, na religião dominante do ocidente, ligada
ao poder[9].
Nesta etapa do trabalho, realizar-se-á, primeiramente, um
breve estudo do panorama histórico da doutrina da expiação, a fim de se
levantar problemas e de encontrar subsídios para uma leitura libertadora desta
doutrina hoje. Em seguida, a partir das questões levantadas pelo estudo da
história da doutrina, buscar-se-á, numa perspectiva sistemática, elementos que
possibilitem uma leitura libertadora da doutrina da expiação. Finalmente,
far-se-á uma breve avaliação do seu potencial libertador de acordo com a
pesquisa. A releitura da doutrina da expiação numa perspectiva sistemática será
realizada no estudo da Teologia Latino-Americana.
2.1. Breve
panorama histórico da doutrina.
Neste item, a doutrina da expiação será estudada a partir
de alguns expoentes importantes da teologia. Aqui, o objetivo é verificar se
esta doutrina é apresentada no decorrer da história de forma legítima, tal como
foi verificado no Antigo e Novo Testamento,
e além disso, apreender elementos que possam ajudar a transmitir esta doutrina
hoje.
Uma das idéias centrais relacionadas à interpretação da
morte de Jesus como expiação é a de resgate, presente no dito de Jesus sobre o resgate em Marcos 10.45, que, no
contexto da comunidade marcana exercia um
enorme impacto, em razão do estado de escravidão da maioria da população. A
noção de resgate passa a ser
interpretada equivocadamente já na Igreja Antiga. Esse desvirtuamento pode ser
observado em Orígenes, segundo o qual o preço do resgate foi pago por Jesus ao
diabo[10] -
interpretação que se manterá por vários séculos e, com algumas variações, é
seguida por Agostinho de Hipona e
Gregório, o Grande[11].
De modo geral, os Pais da Igreja anteriores ao Concílio de Nicéia se utilizaram
da linguagem sacrificial para expressar a doutrina da expiação, mas sem maior
elaboração conceitual[12],
simplesmente por pressuporem esta doutrina.
Segundo Agostinho, a graça de Deus, revelada na obra de
Cristo, é a única fonte de salvação, pois com a morte expiatória de Cristo, o
ser humano participa da graça de Deus mediante a fé nele. Nas palavras de
Agostinho, "fomos reconciliados com
Ele pelo sangue de seu Filho"[13].
Para Agostinho, o resultado da expiação é duplo: remove o pecado e realiza a
regeneração do ser humano[14].
Anselmo de Cantuária,
no século XI, influenciado pela estrutura social de sua época, introduz a
teoria da satisfação, que "consistia na idéia de que a desobediência,
quer em relação a Deus ou ao senhor feudal, implicava uma desconsideração de
sua honra e dignidade, exigindo para seu cancelamento uma penitência ou doação apropriados como
satisfação"[15].
O modelo de Anselmo corresponde à uma "imagem
jurídica da salvação"[16].
Aqui, já pode ser observada mais uma desfiguração da doutrina, não de raiz
meramente especulativa, mas de inspiração social, pois a ideologia da dominação
do senhor feudal sobre os servos é incorporada à estrutura da própria doutrina,
legitimando, assim, esta dominação.
Na Idade Média, especialmente a partir
do papa Gregório Magno, a Igreja no ocidente passou a desenvolver uma série de
doutrinas estranhas às Escrituras. Este papa foi “responsável não só pela
aprovação teológica de uma veneração maciça de santos e relíquias, mas também
pela idéia de purgatório e de missas pelas almas”[17].
A doutrina do purgatório, por exemplo, foi um desenvolvimento das idéias de
Santo Agostinho,
o qual afirmava que “podia existir um
lugar onde os que morreram em pecado passariam por um processo de purificação,
antes de entrar no Reino”[18].
Gregório desenvolve esta idéia de Agostinho, mas passa a afirmar
categoricamente que o purgatório não é uma mera possibilidade, mas uma
realidade. Essas doutrinas, estranhas à doutrina da expiação, infelizmente
foram utilizadas muitas vezes pela Igreja Católica Romana como instrumento de
dominação. Contra estas doutrinas, bem como várias outras, se levantam tanto os
pré-reformadores quanto os reformadores do século XVI.
Para Calvino, a doutrina da expiação tem um lugar central
na teologia, pois é o fundamento da graça de Deus[19].
Calvino era contra a idéia de uma graça barata, segundo a qual o perdão
consistiria simplesmente na desconsideração da culpa. Segundo ele, o perdão e a
justiça de Deus caminham juntos, de modo que a justificação pela graça,
mediante a fé, é resultado do auto-sacrifício oferecido por Cristo[20].
Calvino afirma que, apesar de toda dor, angústia e sofrimento, o sacrifício de
Cristo, no qual tomou sobre si todo o nosso pecado e miséria, foi voluntário[21],
e a ira do juízo de Deus, que deveria cair sobre nós, caiu substitutivamente sobre Cristo[22].
Ora, "não poderíamos ter confiança
total em que Jesus
Cristo é nosso resgate, nosso preço e reconciliação, se não
houvesse sido sacrificado"[23].
A teologia liberal, de Schleiermacher, Ritschl, Harnack,
entre outros, é a teologia protestante predominante no século XIX, que
enfatizava a humanidade de Cristo, muitas vezes em detrimento da sua divindade.
Para essa escola, Jesus é um homem que pregou o Reino de Deus. Segundo Harnack,
o "último
e grande representante do protestantismo liberal"[24],
o Jesus histórico não é o Cristo do dogma, de modo que "a esperança da teologia cristã devia residir
num movimento de retorno ao Jesus da história, abandonando os dogmas
metafísicos a respeito de sua pessoa"[25].
O que há de singular em Jesus de Nazaré se restringe à vida libertadora que
viveu, a qual revela como Deus age. Um dos objetivos da teologia liberal, em
sua origem, era "renovar a fé cristã
e com isso deixar para trás o dogma cristológico da Igreja"[26].
Neste sentido, essa escola teológica não defende nenhum tipo de doutrina da
expiação. Segundo Moltmann, a teologia liberal parte de um preconceito hermenêutico, segundo o qual "a história seria história do homem, e a
história do homem é o reino da moralidade. Por isso Jesus deve ser entendido
como [mero] homem"[27].
À luz do exposto acima, pode-se perceber que, no decorrer
da história, à medida que a doutrina da expiação é lida e reinterpretada no seu
próprio contexto histórico, ela nem sempre é relida numa perspectiva fiel ao
Novo Testamento, sendo muitas vezes utilizada como instrumento não de
libertação, mas de alienação. A partir de Orígenes, o resgate passa a ser
interpretado como pago ao diabo, idéia completamente estranha às Escrituras. A
doutrina da expiação de Anselmo incorpora o sistema de dominação feudal em sua
estrutura, legitimando esse estado de coisas. A teologia liberal parte de uma
concepção reducionista da doutrina, pois ao reduzir tudo à moralidade, deixa de
lado elementos fundamentais da tradição cristã, com profundo potencial
libertador. No entanto, o retorno às Escrituras
tem sido um constante elemento de renovação da doutrina, especialmente nos
trabalhos dos reformadores, como João Calvino, que rejeitam doutrinas estranhas
às Escrituras. Os desvios doutrinários eram, muitas vezes, utilizados pela
hierarquia eclesiástica da Igreja
Católica Romana da época para galgar
domínio, recursos e poder.
O estudo da doutrina da expiação no decorrer da história
levantou questões importantes quanto ao potencial libertador dessa doutrina,
tais como: a) a teologia liberal aponta para a desumanidade de um Deus capaz de sacrificar Seu próprio Filho, o
que será discutido a seguir, abordando a doutrina da expiação numa perspectiva
trinitária; b) algumas interpretações da doutrina da expiação a adequaram à
determinada ideologia de dominação, o que será discutido na abordagem da
doutrina da expiação como fim dos sacrifícios; c) procurar-se-á reunir
elementos libertadores das várias interpretações da doutrina da expiação, bem
como as conclusões dos itens acima, em busca de uma apresentação da doutrina
numa perspectiva reformada e libertadora.
2.2. O
Auto-sacrifício de Cristo como movimento intratrinitário de solidariedade
libertadora.
Segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano, de 381 d.C.,
aceito pelos três maiores e principais ramos do cristianismo (Ortodoxo,
Protestante e Católico-Romano), Jesus Cristo é Deus, ao lado de Deus Pai e do
Espírito Santo[28].
Essa fé está fundamentada tanto no Novo Testamento quanto nas primeiras formas
de confissão de fé da igreja primitiva[29].
Além disso, segundo Bailie, o conceito de Trindade é a base verdadeira da vida
cristã[30].
Sob essa perspectiva teológica, e por razões
ecumênicas e históricas, abordaremos a conexão da doutrina da expiação com a doutrina trinitária, segundo a qual "o Deus uno é, por toda a eternidade, Pai, Filho e
Espírito Santo"[31].
Por isso, estudar-se-á aqui não a doutrina da trindade, mas a doutrina da expiação numa perspectiva
trinitária, sem a qual não teria um sentido libertador.
A crítica da teologia liberal, segundo a qual um deus que
sacrifica o próprio Filho é um deus sanguinário, se deve a uma falha grave em
sua teologia: a falta de uma perspectiva trinitária. É o preço pago por esta
escola por considerar apenas a humanidade, e não a divindade ontológica de
Cristo. Na verdade, no sacrifício expiatório de Cristo, o deus que se manifesta
não é um deus cruel e sanguinário, mas o Deus do amor e da libertação. Isto
porque o sofrimento e a morte de Cristo são na verdade o sofrimento do próprio
Deus, e é por esta razão que são libertadores,
pois não haveria "teologia cristã, ou seja, libertadora, sem a
memória permanente dos sofrimentos de Deus na cruz"[32].
Ora, "no Filho, Deus participa na
condição humana até mesmo na morte, com a finalidade de conceder à humanidade o
perdão do pecado, a ressurreição e a vida eterna"[33].
Neste sentido, a doutrina da expiação só pode ser compreendida numa perspectiva
trinitária[34],
porquanto se o crucificado é
meramente um homem, e não Deus, os teólogos liberais teriam razão ao afirmar
que esta doutrina só pode ser condizente com um Deus cruel e sanguinário.
A morte sacrificial de Cristo deve ser entendida como
expiação apenas quando considerada como terrível sofrimento dentro do próprio Deus[35],
um sofrimento intratrinitário, pois na entrega do Filho à morte e ao abandono,
o próprio Pai se entrega à dor de seu amor paternal[36],
de modo que "à morte do Filho
corresponde o sofrimento do Pai"[37],
porque afeta o próprio Deus[38].
Nas palavras de Moltmann, "reconhecer
Deus no Cristo crucificado significa entender sua história trinitária"[39].
Cristo não é um mero objeto, mas é também sujeito da entrega. Ao mesmo tempo em
que foi entregue, ele se entregou, pois sua atitude é tanto ativa quanto passiva
no ato do sacrifício[40].
O Pai não é simplesmente aquele que entrega o Filho, mas também aquele que é
entregue. Nas palavras de Barth, "elegendo
essa pessoa humana Jesus para a unidade consigo mesmo em seu Filho , Deus se deu a
si mesmo por nós, sim, entregou-se até ao obscurecimento total de sua unidade
consigo mesmo"[41].
Moltmann, por sua vez, afirma: "por
isso se revela na entrega do Filho também a entrega do Pai. A auto-renúncia do
Filho expressa também a auto-renúncia do
Pai; Cristo foi crucificado na fraqueza de Deus"[42].
Moltmann expressa a auto-entrega de Deus trinitariamente, e em linguagem
sacrificial: "O Pai deixa o Filho
imolar-se através do Espírito. O Pai é o amor, que crucifica; o Filho é o amor crucificado; o Espírito é a
força invencível da cruz. A cruz está colocada no meio da Trindade"[43].
Como se vê, a morte expiatória de Cristo não é apenas um
sofrimento intratrinitário, mas também solidário, e por isso soteriológico[44].
Ao se entregar à morte, Cristo expia os pecados da humanidade, o que revela a
solidariedade de Deus para conosco. Nas palavras de Bailie, Jesus "morreu pelos pecadores no mais pleno sentido
histórico: foi o seu amor pelos pecadores que o levou a morrer na Cruz"[45].
Tillich, em linguagem filosófica, define a expiação como "o efeito do Novo Ser em Jesus como o Cristo
sobre aqueles que são possuídos por ele em seu estado de alienação"[46],
com o objetivo de superar a alienação do pecado. Já Moltmann define a expiação
como "uma força que liberta os
autores [do pecado e da violência] e
seus descendentes do ódio contra si próprios e que os torna capazes de uma vida
na justiça"[47].
Em ambos os casos, a expiação é realizada por Deus[48]:
do Pai, em Cristo, e mediante o Espírito, em favor do ser humano. Ao sofrer com e a favor do ser humano, Deus revela que a morte expiatória de Cristo
não é apenas um sofrimento intratrinitário, mas solidário. Ora, "longe de ser uma iniciativa humana, o
sacrifício que reconcilia é dom do alto: é Deus que estabelece a nova e eterna
aliança no sangue do Crucificado e 'expia' os pecados dos homens, perdoando e
oferecendo-se a eles"[49].
Por outro lado, esta expiação também deve produzir solidariedade entre os seres
humanos, pois os liberta da alienação, capacitando-os a viver na justiça do
Reino do Deus Triúno. Cristo, mediante sua morte expiatória e sofrimentos, não
apenas "julga o pecado do mundo",
mas também "oferece o testemunho contagiante do amor que salva: a dor do
negativo, assumida no amor e na fé do
Crucificado em solidariedade com o sofrimento do mundo, torna-se
possibilidade de salvação, a agonia da morte é transformada em aurora de vida"[50].
A refutação das críticas que a teologia liberal faz da
doutrina da expiação pode ser sintetizada nas seguintes palavras de Moltmann:
"o mistério da expiação vicária de Deus se
torna patente quando consideramos o acontecimento da cruz como um acontecimento
de Deus e o interpretamos trinitariamente. (...) a força da ação vicária divina
é a força do amor eterno com o qual desde a eternidade Pai, Filho e Espírito
Santo estão aí 'um pelo outro'. Pois o amor com que o Pai tanto amou o mundo
que, através de seu Filho e em sua paixão e morte, ele toma sobre si a expiação
pelos pecados do mundo, é o mesmo amor que o Deus trino é na eternidade"[51].
2.3. O
Auto-sacrifício expiatório de Cristo como fim dos sacrifícios.
Para alguns teólogos, a doutrina da expiação é uma
doutrina de legitimação da violência e do sacrifício do marginalizado[52].
Essa interpretação tem a seu favor fatos que marcaram a história, conforme já
exposto. No entanto, esta interpretação e essa práxis são uma traição da
mensagem neotestamentária, pois no Novo Testamento a doutrina da expiação é
apresentada exatamente como o oposto, ou seja, como o anúncio profético do fim
dos sacrifícios.
O auto-sacrifício de Cristo, no qual ele mesmo é tanto a
vítima quanto o sumo-sacerdote que sacrifica[53],
é superior aos sacrifícios levíticos,
pois estes não são suficientes para a purificação da consciência. Deste modo,
anuncia-se profeticamente o fim dos sacrifícios, em razão do auto-sacrifício
expiatório de Cristo. O fim dos sacrifícios apresenta dois aspectos: o
ecológico e o social.
Sob aspecto ecológico, o auto-sacrifício expiatório de
Cristo anuncia o fim do sacrifício de animais. A violência contra os animais,
que ritualmente ainda pode ser observada nos dias de hoje em várias religiões,
perde a sua legitimidade, pois Cristo foi sacrificado de modo cabal, para que
os demais sacrifícios não mais ocorram. Não se trata aqui de legitimar a
intolerância religiosa contra esses grupos, mas de anunciar que a violência
ritual dos sacrifícios de animais perdeu
a sua legitimidade. Além disso, pode-se tomar aqui tanto os animais quanto os
seres humanos como representantes da criação, de modo que a doutrina da
expiação se abre para uma leitura ecológica, na qual a violência contra a
natureza perde sua legitimidade, em
razão da violência já sofrida por Cristo. A relação entre a doutrina da
expiação e a da criação está teologicamente fundamentada no Novo Testamento em
alguns textos, que apresentam "uma
visão de conjunto do senhorio total de Cristo, do Filho do eterno Pai, da sua
função como mediador da criação bem como da preservação do mundo e da
purificação de nossos pecados através dele"[54].
Deste modo, o sacrifício único e suficiente de Cristo é a declaração do próprio
Deus da abominação dos demais sacrifícios, oferecidos mediante a opressão e a
violência.
Quanto ao aspecto social, o auto-sacrifício de Cristo
anuncia o fim do sacrifício humano. Não há sacrifício maior, violência maior,
que o sacrifício de vidas humanas. Esses sacrifícios não são prerrogativa
apenas de determinadas religiões, que inclusive os realizam nos dias de hoje,
mas também de sistemas desumanos e diabólicos, que promovem a alienação[55],
ou seja, que sacrificam o humano, que o desumanizam. O sacrifício humano não é
realizado apenas com a morte biológica, mas sempre que se priva alguém de sua
dignidade de ser humano, pois "qualquer
pessoa ferida em sua dignidade acaba sendo
destruída"[56].
Nesse sentido, a morte sacrificial e expiatória de Cristo se revela como
denúncia de todo sacrifício humano, de toda violação dos direitos
humanos, de todo ato de violência e opressão, pois Cristo mesmo já foi
sacrificado, para que ninguém mais o seja.
O auto-sacrifício expiatório de Cristo revela que ambos os
sacrifícios, tanto o do ser humano quanto o dos animais, são um terrível
sacrilégio. Isto porque o único com autoridade e
dignidade para realizar o sacrifício é o sumo-sacerdote, que para o
cristão é o próprio Cristo. Esse sumo-sacerdote, no entanto, não sacrificou
nada ou ninguém além de si mesmo, e de uma vez por todas, num sacrifício único,
suficiente e definitivo, o que deve implicar na luta de todo discípulo de
Cristo contra toda e qualquer forma de sacrifício de vidas humanas. Ora, "a partir da morte de Jesus, já não são mais
necessários sacrifícios"[57].
2.4. O
Potencial libertador da doutrina da expiação.
A partir das considerações
recém-expostas acerca do
desenvolvimento histórico desta doutrina e de seu caráter trinitário e sacrificial,
pode-se considerá-la como um elemento de libertação integral. Em primeiro
lugar, a doutrina da expiação promove a reconciliação do ser humano com o Deus
triúno, o qual toma a iniciativa de realizar a expiação, e participa desta
tanto como vítima quanto como sumo-sacerdote. Em segundo lugar, a doutrina da
expiação promove a reconciliação entre os
seres humanos, pois tanto a vítima do pecado quanto o autor são resgatados em
Cristo, e reconciliados[58].
Em terceiro lugar, ela promove a superação de tensões sociais, através do
princípio da substituição[59].
Em quarto lugar, a doutrina da expiação fundamenta a crítica da violência tanto
contra os seres humanos quanto contra os animais, o que fornece
subsídios para o desenvolvimento de uma teologia ecológica. Em quinto lugar, a doutrina da expiação
promove a libertação emocional, porque ela tem o potencial de libertar o ser
humano de sua culpa, bem como de capacitá-lo a uma nova vida, vivida em justiça[60],
a partir da participação do novo ser em Cristo[61].
Pode-se concluir a partir do estudo da teologia
sistemática que a doutrina da expiação é uma doutrina que, fiel às Escrituras,
promove não a alienação, mas a libertação integral do ser humano, em especial,
e da própria criação, em geral.
[1]
HICK, John. A metáfora do Deus encarnado,
p. 9.
[2]
HICK, John. A metáfora do Deus encarnado,
p. 9; Conforme também GEBARA, Ivone. Rompendo
o silêncio, pp. 131-137; NOLAN, Albert. Jesus
antes do cristianismo, p. 15.
[3]
KÜNG, Hans. A Igreja católica, pp.
128-132.
[4]
KÜNG, Hans. A Igreja católica, p.
130.
[5]
GIRARDI, Giulio. Os excluídos construirão a nova história?, pp. 102-108
[6]
GIRARDI, Giulio. Os excluídos construirão a nova história?, p. 27.
[7]
HOORNAERT, Eduardo. Formação do
catolicismo brasileiro - 1550-1800, p. 43.
[8]
KÜNG, Hans. A Igreja Católica, pp.
63ss.
[9]
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida,
pp. 97-98.
[10]
TILLICH, Paul. História do pensamento
cristão, p. 79; TILLICH, Paul. Teologia
Sistemática, p. 376.
[11]
HICK, John. A metáfora do Deus encarnado,
pp. 155-156; TEIXEIRA, Alfredo Borges. Dogmática
evangélica, p. 211.
[12]
TEIXEIRA, Alfredo Borges. Dogmática
evangélica, p. 211.
[13]
AGOSTINHO apud CALVINO, Juan. Institución de la religión
cristiana, vol
I, p. 375.
[14]
HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia,
p. 116.
[15] HICK,
John. A metáfora do Deus encarnado,
p. 159. Conforme HÄGGLUND, Bengt. História
da Teologia, p. 147; DUPUIS, Jacques. Introdução
à cristologia, p. 197.
[16]
DUPUIS, Jacques. Introdução à cristologia,
p. 197.
[17]
KÜNG, Hans. A Igreja católica, p. 96.
[18]
DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo
Medieval, p. 27.
[19]
GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores, pp. 218ss.
[20] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo
II, p. 371.
[21] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I,
p. 376.
[22] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I,
p. 378.
[23] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I,
p. 379.
[24]
MONDIN, Battista. Os Grandes teólogos do
século vinte, p. 28.
[25]
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo,
p. 40. Conforme também MONDIN, Battista. Os
Grandes teólogos do século vinte, p. 28.
[26] THEISSEN, Gerd e MERZ, Annette. O Jesus Histórico, p. 23.
[27]
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de
Deus, p. 76.
[28]
FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história
de Deus, Deus na história, pp. 143-147; SCHNEIDER, J. "Deus, deuses,
Emanuel", p. 571.
[29]
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo
Testamento, pp. 379ss; GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento, pp. 212ss,475.
[30]
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo,
p. 181.
[31]
CMI. A Confissão da fé apostólica, p.
30.
[32]
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida,
p. 52.
[33]
CMI. A Confissão da fé apostólica, p.
31.
[34]
BERKHOF, Louis. Teologia sistemática,
p. 373; CMI. A Confissão da fé apostólica,
p. 30; MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino
de Deus, p. 96.
[35]
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida,
p. 133.
[36]
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida,
p. 61.
[37]
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de
Deus, p. 94.
[38]
TILLICH, Paul. Teologia sistemática,
p. 339.
[39]
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida,
p. 64.
[40]
AGOSTINHO, Santo. Confissões, p. 301;
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo,
p. 208; FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré -
história de Deus, Deus na história, p. 283;
[41]
BARTH, Karl. Dádiva e louvor, p. 244.
[42]
MOLTMANN, Jürgen. O Caminho de Jesus
Cristo, p. 241.
[43]
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de
Deus, p. 95.
[44]
FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história
de Deus, Deus na história, pp. 290-294.
[45]
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo,
p. 210.
[46]
TILLICH, Paul. Teologia sistemática,
p. 375.
[47]
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida,
p. 131.
[48]
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo,
p. 200.
[49]
FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história
de Deus, Deus na história, p. 292.
[50]
FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história
de Deus, Deus na história, p. 290.
[51]
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida,
p. 134.
[52]
ASSMANN, Hugo. "Examinando o caso Boff", p. 47; GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio, p. 133.
[53]
AGOSTINHO, Santo. Confissões, p. 301.
[54]
MOLTMANN, Jürgen. Doutrina ecológica da
criação, p. 146.
[55]
SANTA ANA, Julio de. "Sacralizações e sacrifícios nas práticas
humanas", pp. 135ss.
[56]
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida,
p. 83.
[57]
SANTA ANA, Julio de. "Sacralizações e sacrifícios nas práticas
humanas", p. 137.
[58]
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida,
p. 130.
[59]
THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento
de Jesus, pp. 82ss.
[60]
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida,
p. 131.
[61]
TILLICH, Paul. Teologia sistemática,
p. 375.
3. Teologia Latino-Americana: libertação integral?
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