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2. Teologia Sistemática: Expiação, Doutrina de Libertação ou Alienação?

           Apesar de a Doutrina da Expiação ser um elemento de libertação tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, no decorrer da história ela foi utilizada muitas vezes como instrumento de alienação, dominação e opressão do mais fraco. Essa é uma das razões pelas quais teólogos, como o anglicano John Hick, questionam a compreensão cristã tradicional[1]. Conforme afirma Hick, "historicamente, o dogma tradicional foi utilizado para justificar grandes males humanos"[2]. Basta recordar a Inquisição[3], "a sistemática perseguição legal de hereges por um tribunal da igreja"[4], responsável pelo assassinato, tortura e mutilação de milhares de pessoas, em nome de Deus. A doutrina da expiação também foi usada como instrumento de coerção político-ideológica no Descobrimento das Américas[5], quando as coroas de Portugal e Espanha, respaldadas pela Igreja, transformaram o evangelho "num instrumento de dominação"[6]. Nesse processo,  milhares de pessoas foram mortas, muitas vezes sob a apelação da própria salvação das almas das vítimas. Nesse sentido, ao tratar do tema da ideologia da 'guerra santa' dos missionários colonizadores portugueses, Hoornaert afirma que "os símbolos relacionados com a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo não escaparam à influência da ideologia guerreira"[7].

           Na verdade, estes argumentos não são definitivos quanto ao caráter da doutrina da expiação, uma vez que doutrinas cristãs legítimas e de impacto libertador foram, na verdade, utilizadas de forma ilegítima no decorrer da história, em razão da crescente ligação que a Igreja passou a estabelecer com o poder, principalmente a partir do século IV. Nessa época, o cristianismo passa muito rapidamente de religião perseguida para religião tolerada, favorecida e, enfim, oficial do Império Romano[8], constituindo-se, a partir de então, na religião dominante do ocidente, ligada ao poder[9].
           Nesta etapa do trabalho, realizar-se-á, primeiramente, um breve estudo do panorama histórico da doutrina da expiação, a fim de se levantar problemas e de encontrar subsídios para uma leitura libertadora desta doutrina hoje. Em seguida, a partir das questões levantadas pelo estudo da história da doutrina, buscar-se-á, numa perspectiva sistemática, elementos que possibilitem uma leitura libertadora da doutrina da expiação. Finalmente, far-se-á uma breve avaliação do seu potencial libertador de acordo com a pesquisa. A releitura da doutrina da expiação numa perspectiva sistemática será realizada no estudo da Teologia Latino-Americana.


2.1. Breve panorama histórico da doutrina.

           Neste item, a doutrina da expiação será estudada a partir de alguns expoentes importantes da teologia. Aqui, o objetivo é verificar se esta doutrina é apresentada no decorrer da história de forma legítima, tal como foi verificado no Antigo e Novo Testamento, e além disso, apreender elementos que possam ajudar a transmitir esta doutrina hoje.

           Uma das idéias centrais relacionadas à interpretação da morte de Jesus como expiação é a de resgate, presente no dito de Jesus sobre o resgate em Marcos 10.45, que, no contexto da comunidade marcana exercia um enorme impacto, em razão do estado de escravidão da maioria da população. A noção de  resgate passa a ser interpretada equivocadamente já na Igreja Antiga. Esse desvirtuamento pode ser observado em Orígenes, segundo o qual o preço do resgate foi pago por Jesus ao diabo[10] - interpretação que se manterá por vários séculos e, com algumas variações, é seguida por Agostinho de Hipona e Gregório, o Grande[11]. De modo geral, os Pais da Igreja anteriores ao Concílio de Nicéia se utilizaram da linguagem sacrificial para expressar a doutrina da expiação, mas sem maior elaboração conceitual[12], simplesmente por pressuporem esta doutrina.

           Segundo Agostinho, a graça de Deus, revelada na obra de Cristo, é a única fonte de salvação, pois com a morte expiatória de Cristo, o ser humano participa da graça de Deus mediante a fé nele. Nas palavras de Agostinho, "fomos reconciliados com Ele  pelo sangue de seu Filho"[13]. Para Agostinho, o resultado da expiação é duplo: remove o pecado e realiza a regeneração do ser humano[14].

           Anselmo de Cantuária, no século XI, influenciado pela estrutura social de sua época, introduz a teoria da satisfação, que "consistia na idéia de que a desobediência, quer em relação a Deus ou ao senhor feudal, implicava uma desconsideração de sua honra e dignidade, exigindo para seu cancelamento uma penitência ou doação apropriados como satisfação"[15]. O modelo de Anselmo corresponde à uma "imagem jurídica da salvação"[16]. Aqui, já pode ser observada mais uma desfiguração da doutrina, não de raiz meramente especulativa, mas de inspiração social, pois a ideologia da dominação do senhor feudal sobre os servos é incorporada à estrutura da própria doutrina, legitimando, assim, esta dominação.

           Na Idade Média, especialmente a partir do papa Gregório Magno, a Igreja no ocidente passou a desenvolver uma série de doutrinas estranhas às Escrituras. Este papa foi “responsável  não só pela aprovação teológica de uma veneração maciça de santos e relíquias, mas também pela idéia de purgatório e de missas pelas almas[17]. A doutrina do purgatório, por exemplo, foi um desenvolvimento das idéias de Santo Agostinho, o qual afirmava que “podia existir um lugar onde os que morreram em pecado passariam por um processo de purificação, antes de entrar no Reino[18]. Gregório desenvolve esta idéia de Agostinho, mas passa a afirmar categoricamente que o purgatório não é uma mera possibilidade, mas uma realidade. Essas doutrinas, estranhas à doutrina da expiação, infelizmente foram utilizadas muitas vezes pela Igreja Católica Romana como instrumento de dominação. Contra estas doutrinas, bem como várias outras, se levantam tanto os pré-reformadores quanto os reformadores do século XVI.

           Para Calvino, a doutrina da expiação tem um lugar central na teologia, pois é o fundamento da graça de Deus[19]. Calvino era contra a idéia de uma graça barata, segundo a qual o perdão consistiria simplesmente na desconsideração da culpa. Segundo ele, o perdão e a justiça de Deus caminham juntos, de modo que a justificação pela graça, mediante a fé, é resultado do auto-sacrifício oferecido por Cristo[20]. Calvino afirma que, apesar de toda dor, angústia e sofrimento, o sacrifício de Cristo, no qual tomou sobre si todo o nosso pecado e miséria, foi voluntário[21], e a ira do juízo de Deus, que deveria cair sobre nós, caiu substitutivamente sobre Cristo[22]. Ora, "não poderíamos ter confiança total em que Jesus Cristo é nosso resgate, nosso preço e reconciliação, se não houvesse sido sacrificado"[23].

           A teologia liberal, de Schleiermacher, Ritschl, Harnack, entre outros, é a teologia protestante predominante no século XIX, que enfatizava a humanidade de Cristo, muitas vezes em detrimento da sua divindade. Para essa escola, Jesus é um homem que pregou o Reino de Deus. Segundo Harnack, o "último e grande representante do protestantismo liberal"[24], o Jesus histórico não é o Cristo do dogma, de modo que "a esperança da teologia cristã devia residir num movimento de retorno ao Jesus da história, abandonando os dogmas metafísicos a respeito de sua pessoa"[25]. O que há de singular em Jesus de Nazaré se restringe à vida libertadora que viveu, a qual revela como Deus age. Um dos objetivos da teologia liberal, em sua origem, era "renovar a fé cristã e com isso deixar para trás o dogma cristológico da Igreja"[26]. Neste sentido, essa escola teológica não defende nenhum tipo de doutrina da expiação. Segundo Moltmann, a teologia liberal parte de um preconceito hermenêutico, segundo o qual "a história seria história do homem, e a história do homem é o reino da moralidade. Por isso Jesus deve ser entendido como [mero] homem"[27].

           À luz do exposto acima, pode-se perceber que, no decorrer da história, à medida que a doutrina da expiação é lida e reinterpretada no seu próprio contexto histórico, ela nem sempre é relida numa perspectiva fiel ao Novo Testamento, sendo muitas vezes utilizada como instrumento não de libertação, mas de alienação. A partir de Orígenes, o resgate passa a ser interpretado como pago ao diabo, idéia completamente estranha às Escrituras. A doutrina da expiação de Anselmo incorpora o sistema de dominação feudal em sua estrutura, legitimando esse estado de coisas. A teologia liberal parte de uma concepção reducionista da doutrina, pois ao reduzir tudo à moralidade, deixa de lado elementos fundamentais da tradição cristã, com profundo potencial libertador. No entanto, o retorno às Escrituras tem sido um constante elemento de renovação da doutrina, especialmente nos trabalhos dos reformadores, como João Calvino, que rejeitam doutrinas estranhas às Escrituras. Os desvios doutrinários eram, muitas vezes, utilizados pela hierarquia eclesiástica da Igreja Católica Romana da época para galgar domínio, recursos e poder.

           O estudo da doutrina da expiação no decorrer da história levantou questões importantes quanto ao potencial libertador dessa doutrina, tais como: a) a teologia liberal aponta para a desumanidade de um Deus capaz de sacrificar Seu próprio Filho, o que será discutido a seguir, abordando a doutrina da expiação numa perspectiva trinitária; b) algumas interpretações da doutrina da expiação a adequaram à determinada ideologia de dominação, o que será discutido na abordagem da doutrina da expiação como fim dos sacrifícios; c) procurar-se-á reunir elementos libertadores das várias interpretações da doutrina da expiação, bem como as conclusões dos itens acima, em busca de uma apresentação da doutrina numa perspectiva reformada e libertadora.


2.2. O Auto-sacrifício de Cristo como movimento intratrinitário de solidariedade libertadora.

           Segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano, de 381 d.C., aceito pelos três maiores e principais ramos do cristianismo (Ortodoxo, Protestante e Católico-Romano), Jesus Cristo é Deus, ao lado de Deus Pai e do Espírito Santo[28]. Essa fé está fundamentada tanto no Novo Testamento quanto nas primeiras formas de confissão de fé da igreja primitiva[29]. Além disso, segundo Bailie, o conceito de Trindade é a base verdadeira da vida cristã[30]. Sob essa perspectiva teológica, e por razões ecumênicas e históricas, abordaremos a conexão da doutrina da expiação com a doutrina trinitária, segundo a qual "o Deus uno é, por toda a eternidade, Pai, Filho e Espírito Santo"[31]. Por isso, estudar-se-á aqui não a doutrina da trindade, mas a doutrina da expiação numa perspectiva trinitária, sem a qual não teria um sentido libertador.

           A crítica da teologia liberal, segundo a qual um deus que sacrifica o próprio Filho é um deus sanguinário, se deve a uma falha grave em sua teologia: a falta de uma perspectiva trinitária. É o preço pago por esta escola por considerar apenas a humanidade, e não a divindade ontológica de Cristo. Na verdade, no sacrifício expiatório de Cristo, o deus que se manifesta não é um deus cruel e sanguinário, mas o Deus do amor e da libertação. Isto porque o sofrimento e a morte de Cristo são na verdade o sofrimento do próprio Deus, e é por esta razão que são libertadores, pois não haveria "teologia cristã, ou seja, libertadora, sem a memória permanente dos sofrimentos de Deus na cruz"[32]. Ora, "no Filho, Deus participa na condição humana até mesmo na morte, com a finalidade de conceder à humanidade o perdão do pecado, a ressurreição e a vida eterna"[33]. Neste sentido, a doutrina da expiação só pode ser compreendida numa perspectiva trinitária[34], porquanto se o crucificado é meramente um homem, e não Deus, os teólogos liberais teriam razão ao afirmar que esta doutrina só pode ser condizente com um Deus cruel e sanguinário.

           A morte sacrificial de Cristo deve ser entendida como expiação apenas quando considerada como terrível sofrimento dentro do próprio Deus[35], um sofrimento intratrinitário, pois na entrega do Filho à morte e ao abandono, o próprio Pai se entrega à dor de seu amor paternal[36], de modo que "à morte do Filho corresponde o sofrimento do Pai"[37], porque afeta o próprio Deus[38]. Nas palavras de Moltmann, "reconhecer Deus no Cristo crucificado significa entender sua história trinitária"[39]. Cristo não é um mero objeto, mas é também sujeito da entrega. Ao mesmo tempo em que foi entregue, ele se entregou, pois sua atitude é tanto ativa quanto passiva no ato do sacrifício[40]. O Pai não é simplesmente aquele que entrega o Filho, mas também aquele que é entregue. Nas palavras de Barth, "elegendo essa pessoa humana Jesus para a unidade consigo mesmo em seu Filho, Deus se deu a si mesmo por nós, sim, entregou-se até ao obscurecimento total de sua unidade consigo mesmo"[41]. Moltmann, por sua vez, afirma: "por isso se revela na entrega do Filho também a entrega do Pai. A auto-renúncia do Filho expressa também a auto-renúncia do Pai; Cristo foi crucificado na fraqueza de Deus"[42]. Moltmann expressa a auto-entrega de Deus trinitariamente, e em linguagem sacrificial: "O Pai deixa o Filho imolar-se através do Espírito. O Pai é o amor, que crucifica; o Filho é o amor crucificado; o Espírito é a força invencível da cruz. A cruz está colocada no meio da Trindade"[43].

           Como se vê, a morte expiatória de Cristo não é apenas um sofrimento intratrinitário, mas também solidário, e por isso soteriológico[44]. Ao se entregar à morte, Cristo expia os pecados da humanidade, o que revela a solidariedade de Deus para conosco. Nas palavras de Bailie, Jesus "morreu pelos pecadores no mais pleno sentido histórico: foi o seu amor pelos pecadores que o levou a morrer na Cruz"[45]. Tillich, em linguagem filosófica, define a expiação como "o efeito do Novo Ser em Jesus como o Cristo sobre aqueles que são possuídos por ele em seu estado de alienação"[46], com o objetivo de superar a alienação do pecado. Já Moltmann define a expiação como "uma força que liberta os autores [do pecado e da violência] e seus descendentes do ódio contra si próprios e que os torna capazes de uma vida na justiça"[47]. Em ambos os casos, a expiação é realizada por Deus[48]: do Pai, em Cristo, e mediante o Espírito, em favor do ser humano. Ao sofrer com e a favor do ser humano, Deus revela que a morte expiatória de Cristo não é apenas um sofrimento intratrinitário, mas solidário. Ora, "longe de ser uma iniciativa humana, o sacrifício que reconcilia é dom do alto: é Deus que estabelece a nova e eterna aliança no sangue do Crucificado e 'expia' os pecados dos homens, perdoando e oferecendo-se a eles"[49]. Por outro lado, esta expiação também deve produzir solidariedade entre os seres humanos, pois os liberta da alienação, capacitando-os a viver na justiça do Reino do Deus Triúno. Cristo, mediante sua morte expiatória e sofrimentos, não apenas "julga o pecado do mundo", mas também "oferece o testemunho contagiante do amor que salva: a dor do negativo, assumida no amor e na fé do Crucificado em solidariedade com o sofrimento do mundo, torna-se possibilidade de salvação, a agonia da morte é transformada em aurora de vida"[50].

           A refutação das críticas que a teologia liberal faz da doutrina da expiação pode ser sintetizada nas seguintes palavras de Moltmann:

"o mistério da expiação vicária de Deus se torna patente quando consideramos o acontecimento da cruz como um acontecimento de Deus e o interpretamos trinitariamente. (...) a força da ação vicária divina é a força do amor eterno com o qual desde a eternidade Pai, Filho e Espírito Santo estão aí 'um pelo outro'. Pois o amor com que o Pai tanto amou o mundo que, através de seu Filho e em sua paixão e morte, ele toma sobre si a expiação pelos pecados do mundo, é o mesmo amor que o Deus trino é na eternidade"[51].


2.3. O Auto-sacrifício expiatório de Cristo como fim dos sacrifícios.

           Para alguns teólogos, a doutrina da expiação é uma doutrina de legitimação da violência e do sacrifício do marginalizado[52]. Essa interpretação tem a seu favor fatos que marcaram a história, conforme já exposto. No entanto, esta interpretação e essa práxis são uma traição da mensagem neotestamentária, pois no Novo Testamento a doutrina da expiação é apresentada exatamente como o oposto, ou seja, como o anúncio profético do fim dos sacrifícios.

           O auto-sacrifício de Cristo, no qual ele mesmo é tanto a vítima quanto o sumo-sacerdote que sacrifica[53], é superior aos sacrifícios levíticos, pois estes não são suficientes para a purificação da consciência. Deste modo, anuncia-se profeticamente o fim dos sacrifícios, em razão do auto-sacrifício expiatório de Cristo. O fim dos sacrifícios apresenta dois aspectos: o ecológico e o social.
           Sob aspecto ecológico, o auto-sacrifício expiatório de Cristo anuncia o fim do sacrifício de animais. A violência contra os animais, que ritualmente ainda pode ser observada nos dias de hoje em várias religiões, perde a sua legitimidade, pois Cristo foi sacrificado de modo cabal, para que os demais sacrifícios não mais ocorram. Não se trata aqui de legitimar a intolerância religiosa contra esses grupos, mas de anunciar que a violência ritual dos sacrifícios de animais perdeu a sua legitimidade. Além disso, pode-se tomar aqui tanto os animais quanto os seres humanos como representantes da criação, de modo que a doutrina da expiação se abre para uma leitura ecológica, na qual a violência contra a natureza perde sua legitimidade, em razão da violência já sofrida por Cristo. A relação entre a doutrina da expiação e a da criação está teologicamente fundamentada no Novo Testamento em alguns textos, que apresentam "uma visão de conjunto do senhorio total de Cristo, do Filho do eterno Pai, da sua função como mediador da criação bem como da preservação do mundo e da purificação de nossos pecados através dele"[54]. Deste modo, o sacrifício único e suficiente de Cristo é a declaração do próprio Deus da abominação dos demais sacrifícios, oferecidos mediante a opressão e a violência.

           Quanto ao aspecto social, o auto-sacrifício de Cristo anuncia o fim do sacrifício humano. Não há sacrifício maior, violência maior, que o sacrifício de vidas humanas. Esses sacrifícios não são prerrogativa apenas de determinadas religiões, que inclusive os realizam nos dias de hoje, mas também de sistemas desumanos e diabólicos, que promovem a alienação[55], ou seja, que sacrificam o humano, que o desumanizam. O sacrifício humano não é realizado apenas com a morte biológica, mas sempre que se priva alguém de sua dignidade de ser humano, pois "qualquer pessoa ferida em sua dignidade acaba sendo destruída"[56]. Nesse sentido, a morte sacrificial e expiatória de Cristo se revela como denúncia de todo sacrifício humano, de toda violação dos direitos humanos, de todo ato de violência e opressão, pois Cristo mesmo já foi sacrificado, para que ninguém mais o seja.

           O auto-sacrifício expiatório de Cristo revela que ambos os sacrifícios, tanto o do ser humano quanto o dos animais, são um terrível sacrilégio. Isto porque o único com autoridade e dignidade para realizar o sacrifício é o sumo-sacerdote, que para o cristão é o próprio Cristo. Esse sumo-sacerdote, no entanto, não sacrificou nada ou ninguém além de si mesmo, e de uma vez por todas, num sacrifício único, suficiente e definitivo, o que deve implicar na luta de todo discípulo de Cristo contra toda e qualquer forma de sacrifício de vidas humanas. Ora, "a partir da morte de Jesus, já não são mais necessários sacrifícios"[57].


2.4. O Potencial libertador da doutrina da expiação.

           A partir das considerações recém-expostas acerca do desenvolvimento histórico desta doutrina e de seu caráter trinitário e sacrificial, pode-se considerá-la como um elemento de libertação integral. Em primeiro lugar, a doutrina da expiação promove a reconciliação do ser humano com o Deus triúno, o qual toma a iniciativa de realizar a expiação, e participa desta tanto como vítima quanto como sumo-sacerdote. Em segundo lugar, a doutrina da expiação promove a reconciliação entre os seres humanos, pois tanto a vítima do pecado quanto o autor são resgatados em Cristo, e reconciliados[58]. Em terceiro lugar, ela promove a superação de tensões sociais, através do princípio da substituição[59]. Em quarto lugar, a doutrina da expiação fundamenta a crítica da violência tanto contra os seres humanos quanto contra os animais, o que fornece subsídios para o desenvolvimento de uma teologia ecológica. Em quinto lugar, a doutrina da expiação promove a libertação emocional, porque ela tem o potencial de libertar o ser humano de sua culpa, bem como de capacitá-lo a uma nova vida, vivida em justiça[60], a partir da participação do novo ser em Cristo[61].

           Pode-se concluir a partir do estudo da teologia sistemática que a doutrina da expiação é uma doutrina que, fiel às Escrituras, promove não a alienação, mas a libertação integral do ser humano, em especial, e da própria criação, em geral.






[1] HICK, John. A metáfora do Deus encarnado, p. 9.
[2] HICK, John. A metáfora do Deus encarnado, p. 9; Conforme também GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio, pp. 131-137; NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo, p. 15.
[3] KÜNG, Hans. A Igreja católica, pp. 128-132.
[4] KÜNG, Hans. A Igreja católica, p. 130.
[5] GIRARDI, Giulio. Os excluídos construirão a nova história?, pp. 102-108
[6] GIRARDI, Giulio. Os excluídos construirão a nova história?, p. 27.
[7] HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro - 1550-1800, p. 43.
[8] KÜNG, Hans. A Igreja Católica, pp. 63ss.
[9] MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, pp. 97-98.
[10] TILLICH, Paul. História do pensamento cristão, p. 79; TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, p. 376.
[11] HICK, John. A metáfora do Deus encarnado, pp. 155-156; TEIXEIRA, Alfredo Borges. Dogmática evangélica, p. 211.
[12] TEIXEIRA, Alfredo Borges. Dogmática evangélica, p. 211.
[13] AGOSTINHO apud CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, vol I, p. 375.
[14] HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia, p. 116.
[15] HICK, John. A metáfora do Deus encarnado, p. 159. Conforme HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia, p. 147; DUPUIS, Jacques. Introdução à cristologia, p. 197.
[16] DUPUIS, Jacques. Introdução à cristologia, p. 197.
[17] KÜNG, Hans. A Igreja católica, p. 96.
[18] DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval, p. 27.
[19] GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores, pp. 218ss.
[20] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo II, p. 371.
[21] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I, p. 376.
[22] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I, p. 378.
[23] CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana, tomo I, p. 379.
[24] MONDIN, Battista. Os Grandes teólogos do século vinte, p. 28.
[25] BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo, p. 40. Conforme também MONDIN, Battista. Os Grandes teólogos do século vinte, p. 28.
[26] THEISSEN, Gerd e MERZ, Annette. O Jesus Histórico, p. 23.
[27] MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p. 76.
[28] FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história de Deus, Deus na história, pp. 143-147; SCHNEIDER, J. "Deus, deuses, Emanuel", p. 571.
[29] CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento, pp. 379ss; GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento, pp. 212ss,475.
[30] BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo, p. 181.
[31] CMI. A Confissão da fé apostólica, p. 30.
[32] MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 52.
[33] CMI. A Confissão da fé apostólica, p. 31.
[34] BERKHOF, Louis. Teologia sistemática, p. 373; CMI. A Confissão da fé apostólica, p. 30; MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p. 96.
[35] MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 133.
[36] MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 61.
[37] MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p. 94.
[38] TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 339.
[39] MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 64.
[40] AGOSTINHO, Santo. Confissões, p. 301; BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo, p. 208; FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história de Deus, Deus na história, p. 283;
[41] BARTH, Karl. Dádiva e louvor, p. 244.
[42] MOLTMANN, Jürgen. O Caminho de Jesus Cristo, p. 241.
[43] MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p. 95.
[44] FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história de Deus, Deus na história, pp. 290-294.
[45] BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo, p. 210.
[46] TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 375.
[47] MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 131.
[48] BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo, p. 200.
[49] FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história de Deus, Deus na história, p. 292.
[50] FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré - história de Deus, Deus na história, p. 290.
[51] MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 134.
[52] ASSMANN, Hugo. "Examinando o caso Boff", p. 47; GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio, p. 133.
[53] AGOSTINHO, Santo. Confissões, p. 301.
[54] MOLTMANN, Jürgen. Doutrina ecológica da criação, p. 146.
[55] SANTA ANA, Julio de. "Sacralizações e sacrifícios nas práticas humanas", pp. 135ss.
[56] MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 83.
[57] SANTA ANA, Julio de. "Sacralizações e sacrifícios nas práticas humanas", p. 137.
[58] MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 130.
[59] THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus, pp. 82ss.
[60] MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 131.
[61] TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p. 375.


3. Teologia Latino-Americana: libertação integral?


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